Páginas

quinta-feira, 19 de maio de 2011

NEGATIVA DE PRODUÇÃO DE PROVAS: ANTECIPAÇÃO DE MÉRITO E AUSÊNCIA DE PARIDADE DE ARMAS.

O informativo 626 do STF mostra o quão débeis (para usar a clássica expressão de FERRAJOLI) são, no processo penal, os poderes probatórios da defesa, quando comparados com os da acusação.

A notícia, intitulada de “inquérito policial: sigilo e direito de vista”, traz, apesar do título, dois julgamentos diversos.  Um é o que dá nome à matéria e refere-se ao direito de se obter ou não acesso a inquérito policial, sob sigilo, no qual não se figura como investigado. Já o outro nada tem a ver com a fase investigava. Refere-se, sim, ao pedido de produção de provas, feito pela defesa, no curso da própria ação penal, já instaurada.

Segundo se observa, a defesa de um dos réus solicitou ao Relator da Ação Penal 470 (Mensalão), Ministro Joaquim Barbosa, que fossem expedidos “ofícios com o objetivo de cotejar a rotina de instituição financeira envolvida no caso com a de outras, na tentativa de demonstrar que as práticas adotadas por aquela seriam semelhantes às demais, ou mesmo mais rigorosas”.

O relator indeferiu o pedido. Contra esta decisão foi interposto agravo regimental, para permitir a apreciação da matéria pelo Plenário do Pretório Excelso.

No julgamento do agravo, narrado no informativo, os ministros mantiveram a decisão do relator ao fundamento de que “ainda que se provasse que as práticas adotadas por dirigentes de outras instituições financeiras análogas fossem semelhantes àquelas atribuídas aos agravantes na mesma época — de modo a concluir que também poderiam, em tese, ser consideradas ilícitas —, esse fato não teria o condão de tornar lícitas condutas similares, como as imputadas aos agravantes. Por essa razão, entendeu-se que as provas que se pretendia produzir não seriam necessárias para o julgamento do caso”.

A decisão merece algumas considerações.

Do pedido feito pela defesa vislumbra-se, ao menos, a possibilidade de se adotar duas teses defensivas: a ocorrência de inexigibilidade de conduta diversa ou a incidência do princípio da adequação social.

A primeira tese residiria no fato de que, como as instituições financeiras, apesar de suas peculiaridades, estão inseridas, em relação a determinadas atividades, num regime de concorrência de mercado, a adoção de determinado comportamento por um grande número delas e a não adoção da medida por outro, poderia significar graves prejuízos financeiros para instituição que não se adaptasse à prática.

Já a segunda tese poderia ser construída no sentido de que os atores envolvidos no sistema financeiro não só praticam, como toleram a conduta imputada ao réu  e talvez - por que não? -  até mesmo com a anuência tácita do banco central. Embora o princípio da adequação social seja amplamente rejeitado por nossos tribunais,   como é sabido, isso não é  - nem pode ser - um fator a impedir que a tese seja formulada e sustentada pela defesa.

Sendo assim, como se pode afirmar que os documentos solicitados não interferem no julgamento do caso? Como poderá a defesa se desincumbir do ônus de provar aquilo que alega?

Visto o caso dessa forma, fica fácil de perceber que o STF antecipou uma decisão de mérito, afirmando, em outras palavras: “nem adianta alegar, porque isso não afasta sua culpa (que eu já formei). Não adianta nem provar sua alegação, porque ela não torna a conduta atípica, lícita ou inculpável” . 

Observe-se que a própria decisão já afasta a possibilidade de reconhecimento da licitude do fato, antecipando, na produção da prova, algo que deveria ser analisado por ocasião do julgamento de mérito.

Agora, e se fosse o Ministério Público quem quisesse tais informações? Ora, não precisaria nem mesmo se dirigir ao STF. Requisitaria, ele próprio, as informações,  e ninguém se atreveria a dizer: “isso não é relevante para a acusação”.

A paridade de armas, elemento  inerente ao devido processo legal, resta maculada. A imparcialidade do julgador, também.

São casos como esse que mostram a ausência total de um mínimo de poderes outorgados à defesa, para que esta bem desempenhe seu mister.

Por isso, apesar da timidez com que nasce, é bem vinda a investigação defensiva, prevista no art. 13 do Projeto de Lei 156/09, o Novo Código de Processo Penal, que diz:

Art. 13. É facultado ao investigado, por meio de seu advogado, de defensor público ou de outros mandatários com poderes expressos, tomar a iniciativa de identificar fontes de prova em favor de sua defesa, podendo inclusive entrevistar pessoas.
§ 1º As entrevistas realizadas na forma do caput deste artigo deverão ser precedidas de esclarecimentos sobre seus objetivos e do consentimento formal das pessoas ouvidas.
§ 2º A vítima não poderá ser interpelada para os fins de investigação defensiva, salvo se houver autorização do juiz das garantias, sempre resguardado o seu consentimento.
§ 3º Na hipótese do § 2º deste artigo, o juiz das garantias poderá, se for o caso, fixar condições para a realização da entrevista.
§ 4º Os pedidos de entrevista deverão ser feitos com discrição e reserva necessárias, em dias úteis e com observância do horário comercial.
§ 5º O material produzido poderá ser juntado aos autos do inquérito, a critério da autoridade policial.
§ 6º As pessoas mencionadas no caput deste artigo responderão civil, criminal e disciplinarmente pelos excessos cometidos. 

É certo que a principal finalidade da investigação defensiva é atuar na fase investigativa, produzindo provas para convencer o juiz da inviabilidade da futura ação penal.

Apesar disso, não se poderá limitar sua abrangência à fase pré-processual (como provavelmente surgirão vozes nesse sentido). Se a defesa tiver como, por si só, produzir material que possa ser utilizado em seu favor, não se pode negá-la. Permitir que ela mesma atue evita decisões judiciais que, ao negar a produção probatória, antecipam o sentir do julgador sobre os fatos.

É preciso reconhecer, entretanto, que o instituto nasce de maneira tímida, com bem menos poderes do que semelhante instituto no direito processual italiano.

Com efeito, ANDRÉ BOIANI AZEVEDO E ÉDSON LUIS BANDAN, ainda em 2004, ao clamar por maiores poderes para a defesa na fase investigativa, explicavam que após a alteração legislativa de 2007, na Itália, permite-se ao advogado:

"a) promover o colóquio não documentado, consistente na entrevista pessoal e informal a potenciais testemunhas; b) receber ou colher (sem a presença do imputado, da vítima ou de outras partes privadas) declaração escrita de pessoas, com a cominação de crime de falso testemunho (excluídas as que, já ouvidas    no inquérito ou processo, estão proibidas de depor perante o defensor); c) requerer laudos periciais ou, então, produzi-los através de assistentes técnicos, d) efetuar vistoria em coisas ou inspecionar lugares públicos ou privados (exceto aqueles abrangidos pela expressão "casa"), em caso de dissenso do particular requerendo expedição de autorização judicial; e) solicitar documentos em poder da Administração Pública, deles extraindo cópias, e, finalmente, f) formar o instrumento para documentação dessas atividades visando ao seu posterior encarte em qualquer estágio do inquérito ou processo. (AZEVEDO, André Boiani e, BALDAN, Édson Luís. A preservação do devido processo legal pela investigação defensiva : ou do direito de defender-se provando. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.11, n.137, p. 6-8, abr. 2004). (grifos nossos).





Vê-se, assim, que, se houvesse tal previsão no ordenamento jurídico pátrio, os advogados do caso analisado nem necessitariam de pedir tais documentos ao STF, nem ouviriam deste, antecipadamente, que "não adianta nem argumentar, porque não vou ouvir"!