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quinta-feira, 19 de maio de 2011

NEGATIVA DE PRODUÇÃO DE PROVAS: ANTECIPAÇÃO DE MÉRITO E AUSÊNCIA DE PARIDADE DE ARMAS.

O informativo 626 do STF mostra o quão débeis (para usar a clássica expressão de FERRAJOLI) são, no processo penal, os poderes probatórios da defesa, quando comparados com os da acusação.

A notícia, intitulada de “inquérito policial: sigilo e direito de vista”, traz, apesar do título, dois julgamentos diversos.  Um é o que dá nome à matéria e refere-se ao direito de se obter ou não acesso a inquérito policial, sob sigilo, no qual não se figura como investigado. Já o outro nada tem a ver com a fase investigava. Refere-se, sim, ao pedido de produção de provas, feito pela defesa, no curso da própria ação penal, já instaurada.

Segundo se observa, a defesa de um dos réus solicitou ao Relator da Ação Penal 470 (Mensalão), Ministro Joaquim Barbosa, que fossem expedidos “ofícios com o objetivo de cotejar a rotina de instituição financeira envolvida no caso com a de outras, na tentativa de demonstrar que as práticas adotadas por aquela seriam semelhantes às demais, ou mesmo mais rigorosas”.

O relator indeferiu o pedido. Contra esta decisão foi interposto agravo regimental, para permitir a apreciação da matéria pelo Plenário do Pretório Excelso.

No julgamento do agravo, narrado no informativo, os ministros mantiveram a decisão do relator ao fundamento de que “ainda que se provasse que as práticas adotadas por dirigentes de outras instituições financeiras análogas fossem semelhantes àquelas atribuídas aos agravantes na mesma época — de modo a concluir que também poderiam, em tese, ser consideradas ilícitas —, esse fato não teria o condão de tornar lícitas condutas similares, como as imputadas aos agravantes. Por essa razão, entendeu-se que as provas que se pretendia produzir não seriam necessárias para o julgamento do caso”.

A decisão merece algumas considerações.

Do pedido feito pela defesa vislumbra-se, ao menos, a possibilidade de se adotar duas teses defensivas: a ocorrência de inexigibilidade de conduta diversa ou a incidência do princípio da adequação social.

A primeira tese residiria no fato de que, como as instituições financeiras, apesar de suas peculiaridades, estão inseridas, em relação a determinadas atividades, num regime de concorrência de mercado, a adoção de determinado comportamento por um grande número delas e a não adoção da medida por outro, poderia significar graves prejuízos financeiros para instituição que não se adaptasse à prática.

Já a segunda tese poderia ser construída no sentido de que os atores envolvidos no sistema financeiro não só praticam, como toleram a conduta imputada ao réu  e talvez - por que não? -  até mesmo com a anuência tácita do banco central. Embora o princípio da adequação social seja amplamente rejeitado por nossos tribunais,   como é sabido, isso não é  - nem pode ser - um fator a impedir que a tese seja formulada e sustentada pela defesa.

Sendo assim, como se pode afirmar que os documentos solicitados não interferem no julgamento do caso? Como poderá a defesa se desincumbir do ônus de provar aquilo que alega?

Visto o caso dessa forma, fica fácil de perceber que o STF antecipou uma decisão de mérito, afirmando, em outras palavras: “nem adianta alegar, porque isso não afasta sua culpa (que eu já formei). Não adianta nem provar sua alegação, porque ela não torna a conduta atípica, lícita ou inculpável” . 

Observe-se que a própria decisão já afasta a possibilidade de reconhecimento da licitude do fato, antecipando, na produção da prova, algo que deveria ser analisado por ocasião do julgamento de mérito.

Agora, e se fosse o Ministério Público quem quisesse tais informações? Ora, não precisaria nem mesmo se dirigir ao STF. Requisitaria, ele próprio, as informações,  e ninguém se atreveria a dizer: “isso não é relevante para a acusação”.

A paridade de armas, elemento  inerente ao devido processo legal, resta maculada. A imparcialidade do julgador, também.

São casos como esse que mostram a ausência total de um mínimo de poderes outorgados à defesa, para que esta bem desempenhe seu mister.

Por isso, apesar da timidez com que nasce, é bem vinda a investigação defensiva, prevista no art. 13 do Projeto de Lei 156/09, o Novo Código de Processo Penal, que diz:

Art. 13. É facultado ao investigado, por meio de seu advogado, de defensor público ou de outros mandatários com poderes expressos, tomar a iniciativa de identificar fontes de prova em favor de sua defesa, podendo inclusive entrevistar pessoas.
§ 1º As entrevistas realizadas na forma do caput deste artigo deverão ser precedidas de esclarecimentos sobre seus objetivos e do consentimento formal das pessoas ouvidas.
§ 2º A vítima não poderá ser interpelada para os fins de investigação defensiva, salvo se houver autorização do juiz das garantias, sempre resguardado o seu consentimento.
§ 3º Na hipótese do § 2º deste artigo, o juiz das garantias poderá, se for o caso, fixar condições para a realização da entrevista.
§ 4º Os pedidos de entrevista deverão ser feitos com discrição e reserva necessárias, em dias úteis e com observância do horário comercial.
§ 5º O material produzido poderá ser juntado aos autos do inquérito, a critério da autoridade policial.
§ 6º As pessoas mencionadas no caput deste artigo responderão civil, criminal e disciplinarmente pelos excessos cometidos. 

É certo que a principal finalidade da investigação defensiva é atuar na fase investigativa, produzindo provas para convencer o juiz da inviabilidade da futura ação penal.

Apesar disso, não se poderá limitar sua abrangência à fase pré-processual (como provavelmente surgirão vozes nesse sentido). Se a defesa tiver como, por si só, produzir material que possa ser utilizado em seu favor, não se pode negá-la. Permitir que ela mesma atue evita decisões judiciais que, ao negar a produção probatória, antecipam o sentir do julgador sobre os fatos.

É preciso reconhecer, entretanto, que o instituto nasce de maneira tímida, com bem menos poderes do que semelhante instituto no direito processual italiano.

Com efeito, ANDRÉ BOIANI AZEVEDO E ÉDSON LUIS BANDAN, ainda em 2004, ao clamar por maiores poderes para a defesa na fase investigativa, explicavam que após a alteração legislativa de 2007, na Itália, permite-se ao advogado:

"a) promover o colóquio não documentado, consistente na entrevista pessoal e informal a potenciais testemunhas; b) receber ou colher (sem a presença do imputado, da vítima ou de outras partes privadas) declaração escrita de pessoas, com a cominação de crime de falso testemunho (excluídas as que, já ouvidas    no inquérito ou processo, estão proibidas de depor perante o defensor); c) requerer laudos periciais ou, então, produzi-los através de assistentes técnicos, d) efetuar vistoria em coisas ou inspecionar lugares públicos ou privados (exceto aqueles abrangidos pela expressão "casa"), em caso de dissenso do particular requerendo expedição de autorização judicial; e) solicitar documentos em poder da Administração Pública, deles extraindo cópias, e, finalmente, f) formar o instrumento para documentação dessas atividades visando ao seu posterior encarte em qualquer estágio do inquérito ou processo. (AZEVEDO, André Boiani e, BALDAN, Édson Luís. A preservação do devido processo legal pela investigação defensiva : ou do direito de defender-se provando. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.11, n.137, p. 6-8, abr. 2004). (grifos nossos).





Vê-se, assim, que, se houvesse tal previsão no ordenamento jurídico pátrio, os advogados do caso analisado nem necessitariam de pedir tais documentos ao STF, nem ouviriam deste, antecipadamente, que "não adianta nem argumentar, porque não vou ouvir"!


segunda-feira, 18 de abril de 2011

A prisão em flagrante e a ilação

O informativo 622 do STF trouxe um interessante julgado acerca da prisão em flagrante. Eis a decisão da 1ª turma:
A 1ª Turma, por maioria, concedeu habeas corpus para anular flagrante imposto ao paciente, preso por haver sido encontrado drogas no interior de sua residência, onde morava com o enteado. Na espécie, após a segregação deste pela suposta prática do crime de tráfico, fora expedido mandado de busca e apreensão, que culminara na prisão em flagrante do padrasto, única pessoa presente naquele local no momento da busca. Asseverou-se que o enteado teria, posteriormente, confessado a prática criminosa e declarado não existir envolvimento por parte do paciente, bem como que este ostentaria bons antecedentes e primariedade. Concluiu-se que o flagrante teria decorrido de ilação e que seria, portanto, ilegal. Determinou-se a expedição de alvará de soltura, a ser cumprido com as cautelas próprias.Vencido o Min. Ricardo Lewandowski, relator, que denegava a ordem. HC 106812/PR, rel. orig. Min. Ricardo Lewandowski, red. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio, 5.4.2011. (HC-106812)

A primeira observação a ser feita diz respeito ao fato de que o tema “legalidade da prisão em flagrante” raras vezes é apreciada pelo STF, ante à impossibilidade de reanálise probatória em sede de habeas corpus.

Diante às menções expressas feitas no julgado à confissão de um dos acusados, tive a curiosidade em checar o julgado do STJ que fora apontado como ato coator. Trata-se do Recurso em Habeas Corpus 29.040, julgado em 14.02.11 (para ler o inteiro teor clique aqui: https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=13188728&sReg=201001698629&sData=20110214&sTipo=51&formato=PDF ).

É interessante observar que em nenhum momento o STJ apreciou a questão da legalidade ou não da prisão em flagrante. A questão lá debatida cingiu-se à possibilidade de concessão de liberdade provisória no crime de tráfico, previsto no art. 33 da lei 11.343/06, em virtude da restrição constante do art. 44 desta Lei.

Não satisfeito, busquei o HC interposto no Tribunal de Justiça do Paraná, que dera ensejo ao Recurso Ordinário interposto no STJ. Trata-se  do HC 682799-6, relatado pelo Desembargador Rogério Kanayama, publicado em 24 de junho de 2010.

Da leitura do acórdão, vê-se que o HC fora impetrado contra o ato do Juízo Criminal  que negou o pedido de liberdade provisória feito pelo advogado do paciente. Ou seja, em primeiro grau de jurisdição, não se alegou a ilegalidade da prisão em flagrante, não se pediu seu relaxamento. Pelo contrário, admitindo-se a legalidade desta, pleiteou-se a concessão da liberdade provisória.

Dessa exposição fica fácil perceber que o STF analisou questão que não fora objeto das instâncias inferiores de modo que, se a conclusão era pela ilegalidade da prisão, o Pretório Excelso deveria não ter conhecido do habeas corpus e concedido a ordem de ofício. Da forma como foi feita, houve manifesta supressão de instância e evidente reexame de provas.

Embora pareça mera discussão terminológica, a atecnia do julgado contribui para o casuísmo com que é tratado o entendimento segundo o qual “o habeas corpus não é a via processual adequada à análise aprofundada de matéria fático-probatória” (HC 101.851-MT, rel. Min. Dias Toffoli, DJ.e de 22.10.2010).
Essa falta de parâmetros seguros sobre o que pode ou não ser analisado em sede de Habeas Corpus acende a luz para a questão da seletividade da Jurisdição. Embora os órgãos policiais sejam os mais facilmente associados à ideia de seletividade, há algum tempo observa-se que os órgãos jurisdicionais tem sido seletivos na forma como decidem, favorecendo às pessoas melhor assistidas e ignorando aqueles desprovidos de maiores recursos, valorizando-se, assim, a velha concepção do processo penal como mecanismo de controle social. Nesse sentido, leia-se a importante obra de Marina Quezado Grosner, intitulada “A seletividade do sistema penal na jurisprudência do STJ: o trancamento da criminalização secundária por decisões em habeas corpus”, IBCCrim, 2008.

Voltando-se agora para o conteúdo da decisão do STF, é preciso lembrar que dentre as modalidades de prisão em flagrante, previstas nos incisos do art. 302 do CPP, duas delas (inc. III e IV) trabalham com a necessidade de presunções. São os chamados flagrantes impróprios e os presumidos, apesar de ontologicamente não haver diferença entre eles.

A presunção, por sua vez, é termo vem do latim e significava prever, imaginar antes, fazer uma pré-concepção, um juízo antecipado de que algo deve ser tratado ou concebido de determinada maneira. O termo, entretanto, adquiriu diversas acepções ao longo dos anos na seara jurídica, de modo que MANZINI (cujo pensamento influenciou o CPP de 1941, ainda vigente) a tratava como meio de prova indireta pelo qual se extrai um dado absoluto ou relativo de uma base da experiência comum. (MORAES, Maurício Zanóide. “Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro: análise de sua estrutura normativa para elaboração legislativa e para a decisão judicial”. Lumen Juris, 2010, p. 83-84 e 133-134).

Muitas vezes as presunções são estabelecidas diretamente pela lei. É o que acontece, v.g, com a presunção de paternidade, constante no parágrafo único do art. 2-A da lei 8.560/92 ou mesmo com a presunção de que aquele que é convocado a ser jurado do Tribunal do Júri possui idoneidade moral, prevista no art. 439 do CPP.

Noutros casos, a lei autoriza aos atores envolvidos na persecução penal analisar determinado fato e valorar se há presunção ou não de que determinada pessoa é o autor deste. Nessas hipóteses, a criação de uma presunção passa, necessariamente, pela realização de uma ilação, no sentido técnico do termo, ou seja, por se inferir algo, a partir de determinada circunstância, por uma dedução. A Ilação é, então, parte do processo de criação, no caso concreto, da presunção.

Sendo assim, há que se concluir que, diante do atual (e vetusto) ordenamento jurídico processual penal, não é todo e qualquer flagrante que se torna ilegal pelo uso de ilações, como parece dar a entender o julgado do STF.

Isso não quer dizer, entretanto, que a decisão do Supremo esteja equivocada. Com efeito, embora o Código admita a ilação na criação da presunção necessária à certas modalidades da prisão em flagrante, há necessidade de que a circunstância geradora da presunção seja apta para tanto, isto é, esteja ligada a um juízo de probabilidade, de modo que a ilação não seja uma mera suposição!!!!!

Vista dessa forma, pode-se entender a decisão da 1ª turma: Não é pelo fato de alguém morar com um suposto traficante que os entorpecentes encontrados na residência serão, necessariamente, de seu conhecimento. É preciso mais. É necessária uma argumentação que vá além da mera crença de que este sabia da atividade ilícita praticada por aquele que com ele vivia.

Pensar de forma diferente seria obrigar o padrasto a invadir a privacidade do enteado e revirar periodicamente os objetos pessoais deste, para averiguar se há ou não droga.

A decisão do STF reforça, indiretamente, mais uma vez, a necessidade de que os autos de prisão em flagrante sejam bem fundamentados (coisa rara, infelizmente), explicitando os motivos que convenceram a autoridade policial, de modo a garantir que a prisão realizada seja embasada em dados empíricos e não em elucubrações ou conjecturas.



quarta-feira, 13 de abril de 2011

Interrogatório do réu nos processos de competência originária dos tribunais: conservadorismo judicial e prejuízo à ampla defesa.

As reformas de 2008 buscaram aprofundar no CPP o sistema acusatório previsto na CF/88, bem como garantir a efetiva possibilidade de defesa. Para isso, passou-se a exigir que a oitiva de testemunhas seja feita diretamente pelas partes (art. 212 do CPP), admitiu-se a possibilidade de absolvição sumária (art. 397) após o oferecimento da resposta à acusação (art. 396-A) e determinou-se que o interrogatório do réu fosse o último ato da fase de instrução, antecedendo às alegações finais e à sentença, como determina o art. 400 do CPP. Essas, entre outras medidas, buscaram, enfim, dar mais garantias àquele que é submetido ao processo penal.
Diante do profundo quadro de mudanças, o art. 394, §4º, do CPP passou a determinar que as disposições dos artigos 395 a 398 do aplicar-se-iam a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados pelo estatuto processual penal. Ou seja, o Legislador estendeu os casos de rejeição da denúncia, a resposta à acusação e as hipóteses de absolvição sumária a todos os procedimentos que tramitem perante juízos singulares.
Não bastasse isso, o art. 394, §5º, do CPP passou a afirmar que as normas do procedimento ordinário devem ser aplicadas subsidiariamente aos procedimentos especiais, ao procedimento sumário e ao sumaríssimo.
Diante desse panorama, uma interpretação meramente literal pode levar à conclusão de que os institutos que não foram generalizados pela cláusula genérica do art. 394, 4º, do CPP não se aplicarão a outros procedimentos, se lá estiverem previstos de forma expressa.
É o que aconteceria com a inversão da ordem de interrogatório do réu. Havendo procedimento que preveja expressamente que o ato será realizado no início do processo, e, considerando que o instituto não foi generalizado a outros procedimentos pelo art. 394, §4º, a conclusão seria no sentido de que o interrogatório não pode ser deslocado para o final da fase de instrução.
E foi com base nessa interpretação meramente literal que o STJ indeferiu pedido feito pela defesa de réu submetido a processo de competência originária de Tribunal de Justiça, para que fosse ouvido novamente, agora ao final da fase instrutória.
Eis o julgado da 5ª turma, constante do informativo 467:

O paciente é detentor do foro privilegiado por prerrogativa de função (prefeito) e, por isso, encontra-se processado sob o rito da Lei n. 8.038/1990, pela prática de gestão temerária. Dessa forma, logo se percebe tratar de procedimento especial em relação ao comum ordinário previsto no CPP, cujas regras, em razão do princípio da especialidade, devem ser afastadas na hipótese. Não se olvida que o § 5º do art. 394 do CPP traz a ressalva de aplicar-se subsidiariamente o rito ordinário nos procedimentos especial, sumário e sumaríssimo nos casos em que há omissões ou lacunas; contudo, quanto aos arts. 395 a 397 do CPP, por exemplo, alguns doutrinadores entendem que eles somente podem incidir no primeiro grau, não atingindo os procedimentos de competência originária dos tribunais. Na hipótese, busca-se novo interrogatório do paciente, agora ao final da instrução processual, tal qual determina o art. 400 do CPP. Sucede que o art. 7º da Lei n. 8.038/1990 prevê momento específico para a inquirição do réu (após o recebimento da denúncia ou queixa) e, constatado não haver quanto a isso lacuna ou omissão nessa lei especial, não há falar em aplicação do mencionado artigo do CPP. Mesmo que se admitisse a incidência do art. 400 do CPP à hipótese, anote-se que o réu foi ouvido antes da vigência da Lei n. 11.719/2008, que trouxe o interrogatório do réu como o último ato da instrução e, como consabido, não é possível a aplicação retroativa dessa norma de caráter procedimental. Precedente citado: HC 152.456-SP, DJe 31/5/2010. HC 121.171-SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 22/3/2011. (grifos nossos)

A decisão, a nosso ver, peca por se prender exclusivamente à interpretação literal da legislação processual.
Com efeito, quando a lei 8.038/90 foi editada tinha ela um claro objetivo: garantir maior proteção àqueles que serão submetidos ao processo penal, tendo em vista a relevância do cargo que ocupam, para garantir-lhes maior independência e segurança no exercício de suas funções. Esse, aliás, é o principal fundamento para a existência do foro por prerrogativa de função, vulgarmente chamado de foro privilegiado.
Tanto é assim que a lei 8.038/90 assegura ao acusado o oferecimento de defesa prévia (art. 4º) e a faculdade de sustentar oralmente seus argumentos perante o Tribunal (art. 6º), antes deste iniciar o julgamento sobre o recebimento ou não da acusação.
A manter-se a decisão do STJ, a lei que tinha por finalidade trazer maior resguardo ao réu acabará por colocá-lo em situação pior daquele que é sujeito ao procedimento ordinário do CPP, a ponto de se concluir que, para gozar do gozar do direito de ser ouvido ao final do processo,  o detentor de cargo com prerrogativa de função deverá renunciar ao mandato!
É preciso reconhecer, então, no caso, a existência de uma lacuna ontológica.
Com efeito, já explicava Maria Helena Diniz[1], que há três tipos de lacunas: as normativas, as ontológicas e as axiológicas. As lacunas normativas ocorrem naqueles casos nos quais não há norma regulando a situação fática analisada. Já as lacunas axiológicas surgem quando há normas regulando a situação, mas não correspondem ao processo dos fatos sociais, que acabam por alijar a norma, tornando-a contrária à sua finalidade precípua. Por fim, há lacuna axiológica quando a aplicação da norma ao caso cria uma situação injusta.
Em outras palavras, é preciso admitir que a estipulação do interrogatório do réu no início do processo não mais se coaduna com a evolução social, que enxerga na sua realização ao final da instrução como a maneira mais efetiva de se garantir a ampla defesa. Tanto é assim que essa passou a ser a regra geral, aquilo que ordinariamente acontece.
Dessa forma, admitindo-se a lacuna, poder-se-á aplicar o art. 394,§5º, ou seja, estará admitida a realização do interrogatório do réu ao final do processo.
Por fim, há tempos a doutrina mais abalizada critica o entendimento embasado no art. 2º do CPP, segundo o qual a norma processual, ainda que mais benéfica, não retroagiria para beneficiar o réu, tendo em vista que, não há como pensar o direito penal desvinculado do processo penal e vice-versa.
É o que afirmava Paulo Queiroz e Antônio Vieira[2]:

“sempre que a lei processual dispuser de modo mais favorável ao réu (...) terá aplicação efetivamente retroativa. E aqui se diz retroativa advertindo-se que, nestes casos, não deverá haver tão somente a sua aplicação imediata, respeitando-se os atos validamente praticados, mas até mesmo a renovação de determinados atos processuais, a depender da fase em que o processo se achar. Neste exato sentido, ressalta Binder, tendo como premissa um modelo processual onde seja vedado ao réu consultar seu advogado antes de ser interrogado e a entrada em vigor durante o processo de norma que lhe assegure tal prerrogativa, que ‘esse acusado teria direito à renovação do ato já realizado para completá-lo de acordo com as novas normas, que dão maiores garantias. E seria o segundo depoimento — não o primeiro — que teria valor’”.
“Assim deveria também ocorrer com os processos ainda não sentenciados, por exemplo, quando da entrada em vigor da Lei nº 10.792/2003, que ajustou o procedimento do interrogatório ao sistema constitucional, exigindo a presença do defensor, assegurando a entrevista prévia entre este e o acusado, permitindo as reperguntas, etc., impondo-se a renovação do ato, mesmo que praticado em consonância com o modelo vigente à época de sua realização”.

Sendo assim, deve-se oportunizar àqueles que ainda não tiveram sentença prolatada a oportunidade de ser ouvido, mesmo que o ato já tenha sido realizado no início da instrução.


[1]DINIZ , Maria Helena. Compêndio de Introdução à ciência do Direito.14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 437.
[2] QUEIROZ, Paulo de Souza, VIEIRA, Antonio. Retroatividade da lei processual penal e garantismo. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.12, n.143, p. 14-17, out. 2004.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Novo CPP e reforma do Código de Processo Penal

A notícia de que a Câmara dos Deputados aprovou na tarde de ontem, dia 07/04/2011, o projeto de lei 4.208/01 causou certa confusão na imprensa, inclusive nos veículos de comunicação especializados em notícias jurídicas, que noticiaram a aprovação do Novo Código de Processo Penal (veja, como exemplo, http://www.conjur.com.br/2011-abr-07/camara-aprova-projeto-cpp-alternativas-prisao-preventiva?utm_source=twitterfeed&utm_medium=twitter).

Embora as mudanças aprovadas atinjam pontos importantes do Código ainda vigente, o projeto votado ontem não  se refere ao Novo Código de Processo Penal. Este é o projeto de lei 156/09, do Senado Federal, que se encontra na Câmara dos Deputados, aguardando aprovação.

Na verdade, o texto aprovado é resultado dos trabalhos da comissão instalada em 8 de fevereiro de 2000, pelo então Ministro da Justiça e teve como integrantes os membros do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBPP. Foram eles: Ada Pelelgrini Grinover (Presidente),  Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes, Luiz Flávio Gomes, Miguel Reale Júnior, Nilzardo Carneiro Leão, Petrônio Calmon Filho (Secretário), Rogério Lauria Tucci, Sidnei Augustinho Beneti e Rui Stoco, que substituiu René Ariel Dotti, como explica Petrônio Calmon  em seu artigo. V. (http://novo.direitoprocessual.org.br/fileManager/Petronio_Calmon___Investigao_criminal_na_reforma_do_cdigo_de_processo_penal___agilidade_e_transparncia.doc)

Naquela oportunidade a comissão elaborou 7 projetos, versando sobre os seguintes temas:

1 - Investigação criminal (ainda não aprovado);
2 - Procedimentos, suspensão do processo e efeitos da sentença penal condenatória (aprovado pela lei 11.719/08);
3 - Provas (aprovado pela lei 11.690/08);
4 - Interrogatório do acusado e defesa efetiva;
5 - Prisão, medidas cautelares e liberdade;
6 - Júri (aprovado pela lei 11.689/08);
7 – Recursos e ações de impugnação (ainda não aprovado).

Ou seja, o texto aprovado ontem é parte do momento histórico marcado pelas chamadas “reformas pontuais”, i.e, por uma época na qual se buscou modficar a legislação por blocos. Buscava-se, assim, evitar a demora com que usualmente tramitam os códigos, como ocorreu com o Código Civil de 2002, que levou quase 30 anos para ser aprovado.

Sendo assim, é aplicável aqui as críticas dos processualistas civis (por todos, v. a obra “Manual de Execução Civil” de Marcelo Abelha Rodrigues), que experimentaram as reformas pontuais desde 1994. Em geral, afirmam eles que as reformas em bloco acabaram por transformar os códigos em verdadeiras “colchas de retalhos”, carentes de um vetor principiológico que os guie e cheio de contradições.

De qualquer modo, enquanto o Novo Código não é aprovado, aguardaremos a sanção presidencial e comentaremos, nos próximos dias, as mudanças trazidas. Até mais!