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segunda-feira, 18 de abril de 2011

A prisão em flagrante e a ilação

O informativo 622 do STF trouxe um interessante julgado acerca da prisão em flagrante. Eis a decisão da 1ª turma:
A 1ª Turma, por maioria, concedeu habeas corpus para anular flagrante imposto ao paciente, preso por haver sido encontrado drogas no interior de sua residência, onde morava com o enteado. Na espécie, após a segregação deste pela suposta prática do crime de tráfico, fora expedido mandado de busca e apreensão, que culminara na prisão em flagrante do padrasto, única pessoa presente naquele local no momento da busca. Asseverou-se que o enteado teria, posteriormente, confessado a prática criminosa e declarado não existir envolvimento por parte do paciente, bem como que este ostentaria bons antecedentes e primariedade. Concluiu-se que o flagrante teria decorrido de ilação e que seria, portanto, ilegal. Determinou-se a expedição de alvará de soltura, a ser cumprido com as cautelas próprias.Vencido o Min. Ricardo Lewandowski, relator, que denegava a ordem. HC 106812/PR, rel. orig. Min. Ricardo Lewandowski, red. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio, 5.4.2011. (HC-106812)

A primeira observação a ser feita diz respeito ao fato de que o tema “legalidade da prisão em flagrante” raras vezes é apreciada pelo STF, ante à impossibilidade de reanálise probatória em sede de habeas corpus.

Diante às menções expressas feitas no julgado à confissão de um dos acusados, tive a curiosidade em checar o julgado do STJ que fora apontado como ato coator. Trata-se do Recurso em Habeas Corpus 29.040, julgado em 14.02.11 (para ler o inteiro teor clique aqui: https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=13188728&sReg=201001698629&sData=20110214&sTipo=51&formato=PDF ).

É interessante observar que em nenhum momento o STJ apreciou a questão da legalidade ou não da prisão em flagrante. A questão lá debatida cingiu-se à possibilidade de concessão de liberdade provisória no crime de tráfico, previsto no art. 33 da lei 11.343/06, em virtude da restrição constante do art. 44 desta Lei.

Não satisfeito, busquei o HC interposto no Tribunal de Justiça do Paraná, que dera ensejo ao Recurso Ordinário interposto no STJ. Trata-se  do HC 682799-6, relatado pelo Desembargador Rogério Kanayama, publicado em 24 de junho de 2010.

Da leitura do acórdão, vê-se que o HC fora impetrado contra o ato do Juízo Criminal  que negou o pedido de liberdade provisória feito pelo advogado do paciente. Ou seja, em primeiro grau de jurisdição, não se alegou a ilegalidade da prisão em flagrante, não se pediu seu relaxamento. Pelo contrário, admitindo-se a legalidade desta, pleiteou-se a concessão da liberdade provisória.

Dessa exposição fica fácil perceber que o STF analisou questão que não fora objeto das instâncias inferiores de modo que, se a conclusão era pela ilegalidade da prisão, o Pretório Excelso deveria não ter conhecido do habeas corpus e concedido a ordem de ofício. Da forma como foi feita, houve manifesta supressão de instância e evidente reexame de provas.

Embora pareça mera discussão terminológica, a atecnia do julgado contribui para o casuísmo com que é tratado o entendimento segundo o qual “o habeas corpus não é a via processual adequada à análise aprofundada de matéria fático-probatória” (HC 101.851-MT, rel. Min. Dias Toffoli, DJ.e de 22.10.2010).
Essa falta de parâmetros seguros sobre o que pode ou não ser analisado em sede de Habeas Corpus acende a luz para a questão da seletividade da Jurisdição. Embora os órgãos policiais sejam os mais facilmente associados à ideia de seletividade, há algum tempo observa-se que os órgãos jurisdicionais tem sido seletivos na forma como decidem, favorecendo às pessoas melhor assistidas e ignorando aqueles desprovidos de maiores recursos, valorizando-se, assim, a velha concepção do processo penal como mecanismo de controle social. Nesse sentido, leia-se a importante obra de Marina Quezado Grosner, intitulada “A seletividade do sistema penal na jurisprudência do STJ: o trancamento da criminalização secundária por decisões em habeas corpus”, IBCCrim, 2008.

Voltando-se agora para o conteúdo da decisão do STF, é preciso lembrar que dentre as modalidades de prisão em flagrante, previstas nos incisos do art. 302 do CPP, duas delas (inc. III e IV) trabalham com a necessidade de presunções. São os chamados flagrantes impróprios e os presumidos, apesar de ontologicamente não haver diferença entre eles.

A presunção, por sua vez, é termo vem do latim e significava prever, imaginar antes, fazer uma pré-concepção, um juízo antecipado de que algo deve ser tratado ou concebido de determinada maneira. O termo, entretanto, adquiriu diversas acepções ao longo dos anos na seara jurídica, de modo que MANZINI (cujo pensamento influenciou o CPP de 1941, ainda vigente) a tratava como meio de prova indireta pelo qual se extrai um dado absoluto ou relativo de uma base da experiência comum. (MORAES, Maurício Zanóide. “Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro: análise de sua estrutura normativa para elaboração legislativa e para a decisão judicial”. Lumen Juris, 2010, p. 83-84 e 133-134).

Muitas vezes as presunções são estabelecidas diretamente pela lei. É o que acontece, v.g, com a presunção de paternidade, constante no parágrafo único do art. 2-A da lei 8.560/92 ou mesmo com a presunção de que aquele que é convocado a ser jurado do Tribunal do Júri possui idoneidade moral, prevista no art. 439 do CPP.

Noutros casos, a lei autoriza aos atores envolvidos na persecução penal analisar determinado fato e valorar se há presunção ou não de que determinada pessoa é o autor deste. Nessas hipóteses, a criação de uma presunção passa, necessariamente, pela realização de uma ilação, no sentido técnico do termo, ou seja, por se inferir algo, a partir de determinada circunstância, por uma dedução. A Ilação é, então, parte do processo de criação, no caso concreto, da presunção.

Sendo assim, há que se concluir que, diante do atual (e vetusto) ordenamento jurídico processual penal, não é todo e qualquer flagrante que se torna ilegal pelo uso de ilações, como parece dar a entender o julgado do STF.

Isso não quer dizer, entretanto, que a decisão do Supremo esteja equivocada. Com efeito, embora o Código admita a ilação na criação da presunção necessária à certas modalidades da prisão em flagrante, há necessidade de que a circunstância geradora da presunção seja apta para tanto, isto é, esteja ligada a um juízo de probabilidade, de modo que a ilação não seja uma mera suposição!!!!!

Vista dessa forma, pode-se entender a decisão da 1ª turma: Não é pelo fato de alguém morar com um suposto traficante que os entorpecentes encontrados na residência serão, necessariamente, de seu conhecimento. É preciso mais. É necessária uma argumentação que vá além da mera crença de que este sabia da atividade ilícita praticada por aquele que com ele vivia.

Pensar de forma diferente seria obrigar o padrasto a invadir a privacidade do enteado e revirar periodicamente os objetos pessoais deste, para averiguar se há ou não droga.

A decisão do STF reforça, indiretamente, mais uma vez, a necessidade de que os autos de prisão em flagrante sejam bem fundamentados (coisa rara, infelizmente), explicitando os motivos que convenceram a autoridade policial, de modo a garantir que a prisão realizada seja embasada em dados empíricos e não em elucubrações ou conjecturas.



3 comentários:

  1. Informações contundentes,aduzindo cada vez mais a importância de se investigar com extrema isenção, e, a qualquer dúvida, possa se presumir a inocência.

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